quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo III


A TERRA DOS HOMENS INFELIZES
 A HORA DO PARTO

A vida acontece na terra dos homens infelizes. E eu estava no interior do Estado do Rio de Janeiro, precisamente no cu de Nova Iguaçu, como ouvira uma senhora muito distinta dizer ao seu filho no ponto do ônibus: "oh, meu filho, fica quieto, eu sei que o ônibus demora aqui no cu do mundo." As mulheres distintas trazem dentro de si um quê de doçura insustentável aos olhos alheios. Mas a lotação veio. Cambaleava pela estrada, mas aproximou-se de nós, não antes de passar pela poça de água barrenta e aspergir numa senhora bem idosa um pouco daquela imundície. A senhora, a contento, correu tanto quanto pôde para embarcar no ônibus. Empurrou meia dúzia de infelizes, aos quais eu me ajuntava, e foi a primeira a conseguir pôr o pé no degrau. Soergueu a cabeça em direção ao motorista dizendo:
__ O senhor não viu a poça d'água, viado do caralho?
__ Não vi, senhora. Perdoa-me. - mas por dentro e nos olhos se via uma alegria branda.
__ Puta que pariu, agora vou ter que lavar esse vestido que tá nojento. - retrucou a senhora, sentando no primeiro banco logo atrás da porta e ao lado do motorista, abrindo-lhe as pernas, mostrando, assim, sua vulva mui peluda de anos sem cuidados ou retoques.  O motorista, enojado, olhou aos céus e maldisse o dia de seu nascimento e sua infância sofrida. No entanto, lembrou-se, sofregamente, da vizinha Angélica, que sempre tomava banho nas noites de verão do lado de fora da casa, com balde e nua, doce feito gaivota do pacÍfico. Nesse instante padeceu de ereção ao que preocupou-se e logo desligou seus pensamentos, a fim de evitar maiores transtornos e acidentes.
Paguei a passagem e sentei-me ao fundo do ônibus. Não havíam lugares vazios nas janelas, eram todas ocupadas por pessoas que não só se conhecíam, mas eram todas parentes. E conversavam, todas, umas com as outras. Sentei-me, assim, no banco do meio, daqueles dos fundos com cinco lugares, o qual pula mais dentre todos os lugares, proibidíssimo aos que têm hemorróidas em crise, sob a pena de uma dolorosa afecção anal. Ao meu lado direito uma criança, na frente dele uma mulher e na dela outra mulher, mãe da primeira criança. Ao meu lado esquerdo, um rapaz, provavelmente uns 25 anos, na frente dele outra criança e na frente da criança uma velha sombria e nojosa, a qual pensei, sim, ter ela hemorróidas, pois estava de joelhos sobre o banco, virada para os parentes atrás - esta senhora era a matriarca. O evento que unira todos naquele ônibus era o nascimento do filho do rapaz e se encaminhavam para a maternidade, com o objetivo de ver a criança e a mãe. Aqui - só aqui - começa o inferno.
"Meu filho nasceu!" gritava o rapaz a todos os transeuntes da rua a cada cinco metros que o ônibus percorria. Não obstante, ocupava-se em pegar pequenos cacos de vidro no chão de uma janela quebrada e punha-se a tacar, ora nas crianças, ora na velha maldita, ora nos transeuntes da rua. Eu olhava-o e deseja a sua morte mais que tudo na vida. Guardei metade das maldições que já havia proferido na vida aos piores seres que já havia encontrado para aquele infeliz feliz pelo nascimento do filho.
Em princípio  eu perguntava-me por quê aquela doce família não se juntara todos no mesmo banco, mas, ao contrário, todos sentados em bancos diferentes, a gritar uns com os outros, tacando cacos de vidro uns nos outros, e eu no meio, tórrido e malquerente de uma morte precisa e eficaz, desejoso de uma bala perdida, de uma pedra atirada dentro do ônibus em direção aos olhos daquele rapaz, aos da velha, que seja.
"Vadio, senta ai e pára de me tacar vidro, vagabundo!" - reclamou a velha com o neto (o rapaz de vinte e cinco anos). "Cala a boca, velha brocha e enrugada " - repetia o rapaz, sorridentemente. A mulher que os acompanhava, às gargalhadas, gritava para que ambos se compusessem. Ela era filha da velha e mãe do rapaz. Mas percebi algo assombroso: estavam todos felizes e essa felicidade não cabia-lhes apenas em seus corpos. Era uma felicidade eloquente, dada somente aos dignos. Era uma felicidade repulsiva e odiosa. E eu, infeliz dentro de mim, só desejava que aquele motorista voltasse a olhar para a perereca esvoaçante daquela primeira velha suja e aspergida de água barrenta sentada ao seu lado com as pernas arreganhadas e o vestido levantado, a essa hora já quase no umbigo por causa dos inúmeros solavancos do ônibus. E que seu pênis se manifestasse frente aos seus pensamentos em Angélica, no doce corpo da cabrocha Angélica e assim a direção do ônibus se perdesse e caísse numa ribanceira grandiosíssima, quicando sobre árvores e seus pedaços no meio do caminho rumo a uma morte rápida, mas completamente eficiente. Todos mortos - era meu sonho. Saí de dentro de meu sonho e o ônibus parou em frente ao ponto cuja referência dizia-me que o meu lugar de destino se aproximava.
Arrumei-me, juntei minha bolsa, meus ódios e temores. Fitei aqueles rostos alegres e felizes - como me irritava a felicidade daquela gente. Olhei para a velha, para as crianças, para o rapaz e roguei a última praga do dia: "Teu filho nasceu? Parabéns, mas ele não passará dessa noite. Boa sorte!"
Desci do coletivo e olheios da rua escura e dentro do ônibus iluminado seus rostos ofuscados fitavam-me com um ódio absorvido de mim mesmo. Sorri pelo canto da boca e falei baixinho: "Vão em paz agora!"

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Sansão e Dalila

Ainda que eu pudesse deixar de ser aquela pedra no teu caminho, Uma novidade aparentemente doce, Fingidamente desinteressada, Não poderia ter entre tantas outras chances, esta última de vir e permanecer feito pedra intransponível no teu caminho. De que outra forma, apesar disso, eu conseguiria dizer a ti que aqui permaneço não por vontade própria, Mas, de certo, pela atração desta figura imageticamente tentadora que você decidiu manter perante tua presença? E mesmo tendo por certeza de que nada além de nada há de acontecer entre mim e ti, ainda, com isso, haveremos de ser tal chance que não há de se realizar. Mas mantém-me, deliberadamente, no caminho, olhando-me feito pedra parada, sem antes chutar-me para longe, porque, talvez, tenhas mais prazer em sentir tamanha necessidade desta presença que me tornei para ti, do que, na verdade, notar que no chão há um buraco cuja ausência seja maior do que o medo que agora você sente. Um vento imperativo, todavia, fará por ti aquilo que suas mãos não têm forças para fazer: arrastar-me-á para uma distância suficientemente longe de tuas vistas, onde serei uma vaga lembrança daquilo que um dia poderia ter sido e não foi. Neste instante, marinheiro das naus, eu hei de lembrar o teu olhar perdido e tu hás de lembrar o meu olhar cativo, para nunca mais, ainda que deliberadamente de novo, você volte a se sentir tão atraído por alguém que nunca antes tivesse desejado tanto e dessa maneira. Ainda lembrarei de como doce me olhava tantas vezes, com esse olhar perdido, falsamente perdido.