A TERRA DOS HOMENS INFELIZES
A HORA DO PARTO
A vida acontece na terra dos homens infelizes. E eu estava no interior
do Estado do Rio de Janeiro, precisamente no cu de Nova Iguaçu, como ouvira uma
senhora muito distinta dizer ao seu filho no ponto do ônibus: "oh, meu
filho, fica quieto, eu sei que o ônibus demora aqui no cu do mundo." As
mulheres distintas trazem dentro de si um quê de doçura insustentável aos olhos
alheios. Mas a lotação veio. Cambaleava pela estrada, mas aproximou-se de nós,
não antes de passar pela poça de água barrenta e aspergir numa senhora bem
idosa um pouco daquela imundície. A senhora, a contento, correu tanto quanto
pôde para embarcar no ônibus. Empurrou meia dúzia de infelizes, aos quais eu me
ajuntava, e foi a primeira a conseguir pôr o pé no degrau. Soergueu a cabeça em
direção ao motorista dizendo:
__ O senhor não viu a poça d'água, viado do caralho?
__ Não vi, senhora. Perdoa-me. - mas por dentro e nos olhos se via uma
alegria branda.
__ Puta que pariu, agora vou ter que lavar esse vestido que tá nojento.
- retrucou a senhora, sentando no primeiro banco logo atrás da porta e ao lado
do motorista, abrindo-lhe as pernas, mostrando, assim, sua vulva mui peluda de
anos sem cuidados ou retoques. O
motorista, enojado, olhou aos céus e maldisse o dia de seu nascimento e sua
infância sofrida. No entanto, lembrou-se, sofregamente, da vizinha Angélica,
que sempre tomava banho nas noites de verão do lado de fora da casa, com balde
e nua, doce feito gaivota do pacÍfico. Nesse instante padeceu de ereção ao que
preocupou-se e logo desligou seus pensamentos, a fim de evitar maiores
transtornos e acidentes.
Paguei a passagem e sentei-me ao fundo do ônibus. Não havíam lugares
vazios nas janelas, eram todas ocupadas por pessoas que não só se conhecíam,
mas eram todas parentes. E conversavam, todas, umas com as outras. Sentei-me,
assim, no banco do meio, daqueles dos fundos com cinco lugares, o qual pula
mais dentre todos os lugares, proibidíssimo aos que têm hemorróidas em crise,
sob a pena de uma dolorosa afecção anal. Ao meu lado direito uma criança, na
frente dele uma mulher e na dela outra mulher, mãe da primeira criança. Ao meu
lado esquerdo, um rapaz, provavelmente uns 25 anos, na frente dele outra
criança e na frente da criança uma velha sombria e nojosa, a qual pensei, sim,
ter ela hemorróidas, pois estava de joelhos sobre o banco, virada para os
parentes atrás - esta senhora era a matriarca. O evento que unira todos naquele
ônibus era o nascimento do filho do rapaz e se encaminhavam para a maternidade,
com o objetivo de ver a criança e a mãe. Aqui - só aqui - começa o inferno.
"Meu filho nasceu!" gritava o rapaz a todos os transeuntes da
rua a cada cinco metros que o ônibus percorria. Não obstante, ocupava-se em
pegar pequenos cacos de vidro no chão de uma janela quebrada e punha-se a
tacar, ora nas crianças, ora na velha maldita, ora nos transeuntes da rua. Eu
olhava-o e deseja a sua morte mais que tudo na vida. Guardei metade das
maldições que já havia proferido na vida aos piores seres que já havia
encontrado para aquele infeliz feliz pelo nascimento do filho.
Em princípio eu perguntava-me por quê aquela doce família não se
juntara todos no mesmo banco, mas, ao contrário, todos sentados em bancos
diferentes, a gritar uns com os outros, tacando cacos de vidro uns nos outros,
e eu no meio, tórrido e malquerente de uma morte precisa e eficaz, desejoso de
uma bala perdida, de uma pedra atirada dentro do ônibus em direção aos olhos
daquele rapaz, aos da velha, que seja.
"Vadio, senta ai e pára de me tacar vidro, vagabundo!" -
reclamou a velha com o neto (o rapaz de vinte e cinco anos). "Cala a boca,
velha brocha e enrugada " - repetia o rapaz, sorridentemente. A mulher
que os acompanhava, às gargalhadas, gritava para que ambos se compusessem. Ela
era filha da velha e mãe do rapaz. Mas percebi algo assombroso: estavam todos
felizes e essa felicidade não cabia-lhes apenas em seus corpos. Era uma
felicidade eloquente, dada somente aos dignos. Era uma felicidade repulsiva e
odiosa. E eu, infeliz dentro de mim, só desejava que aquele motorista voltasse
a olhar para a perereca esvoaçante daquela primeira velha suja e aspergida de
água barrenta sentada ao seu lado com as pernas arreganhadas e o vestido
levantado, a essa hora já quase no umbigo por causa dos inúmeros solavancos do
ônibus. E que seu pênis se manifestasse frente aos seus pensamentos em
Angélica, no doce corpo da cabrocha Angélica e assim a direção do ônibus se perdesse
e caísse numa ribanceira grandiosíssima, quicando sobre árvores e seus pedaços
no meio do caminho rumo a uma morte rápida, mas completamente eficiente. Todos
mortos - era meu sonho. Saí de dentro de meu sonho e o ônibus parou em frente
ao ponto cuja referência dizia-me que o meu lugar de destino se aproximava.
Arrumei-me, juntei minha bolsa, meus ódios e temores. Fitei aqueles
rostos alegres e felizes - como me irritava a felicidade daquela gente. Olhei
para a velha, para as crianças, para o rapaz e roguei a última praga do dia:
"Teu filho nasceu? Parabéns, mas ele não passará dessa noite. Boa
sorte!"
Desci do coletivo e olheios da rua escura e dentro do ônibus iluminado
seus rostos ofuscados fitavam-me com um ódio absorvido de mim mesmo. Sorri pelo
canto da boca e falei baixinho: "Vão em paz agora!"